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Relato de Acidente - Temos que tirar seu rim

07/05/2017 - O auge da temporada está por vir e os treinos se intensificam. Dia de dar um rolé mais longo, mesclando trilhas e asfalto. Nada demais... vai dar umas 3 horas de pedal, uns 50 km e vai dar tempo de chegar para almoçar e passar o resto do domingo vendo séries do Netflix.

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    Pedro Cury

O percurso escolhido é sair da Zona Sul do Rio de Janeiro, subir as paineiras, ir até as trilhas da Floresta da Tijuca e voltar pela Vista Chinesa. Andre, um amigo que recentemente descobriu o mountain biking, é a companhia do rolé e será sua primeira vez nessas trilhas.

Vamos na mais Fácil

A ideia não era um treino super técnico, estava de bicicleta rígida e queria apenas dar algumas voltas na trilha mais fácil dali, a São Miguel. Ainda mais por ser a primeira vez em trilhas assim para o meu amigo. Fizemos então uma descida parando nos trechos que exigiam atenção, para nas próximas voltas fazer tudo sem parar.

Apesar de ser um domingo, a frequência de ciclistas nas trilhas não é tão grande e não existem horários de mais movimento. Além disso, particularmente na Floresta da Tijuca, as trilhas não são compartilhadas, ou seja, nessa trilha só terá ciclistas e não caminhantes. Mesmo assim, cruzamos com um amigo de longa data, Guilherme Renke, que além de atleta é médico. Conversamos um pouco, ele falou que daria mais algumas voltas.

O que ta acontecendo ?

Fui para a segunda volta com o André. Falei que iria na frente, mas pararia no trecho mais difícil para caso ele tivesse algum problema. Passei este trecho de pedras e fiquei esperando. Depois de um tempo, reparei que poderia estar muito no meio do caminho e resolvi ir um pouco mais pra frente. Subi na bike, andei alguns metros e de repente, meu pé escorregou do pedal...

Pela primeira vez da minha vida, cai de pernas abertas no quadro da bicicleta. Era uma descida, estava bem devagar, mas não tinha apoio nos pés... segurei o guidon e a bike andou um pouco até travar numa raíz. Vi que ia cair e juntei os braços pra me proteger. Ainda caindo, pensei... "ainda bem que ninguém viu esse tombo idiota".

Um dos tombos mais bobos da minha vida poderia ter sido fatal!



Eu faço mountain biking há mais de 20 anos. Já competi no downhill que é a modalidade mais extrema, já fiz trial que é a modalidade mais técnica. Já quebrei 3 capacetes, já tomei tombos em que demorei pra descobrir onde a bicicleta parou. Estou acostumado a cair. Esse estaria na lista dos tombos mais bobos da minha vida... daqueles que se alguém tivesse filmado, ia mandar pra uma rede social ou transformar em "meme". Mas alguma coisa estava diferente...

Se segura pra não desmaiar

Já no chão, senti um enjoo estranho. Não era dor, era um embrulho difícil de explicar. Fui me fazendo um auto-diagnostico pra entender o que era. "Ok, tudo mexendo, não tenho ossos quebrados, não estou paralítico, deve ser costelas... mas dizem que quebrar costelas você tem uma dor muito forte e dificuldade pra respirar... não, não é isso... Mal sinal!. Meu companheiro de pedal chegou e perguntou o que estava acontecendo. Primeira vez dele nessa trilha e nessa situação.

Ainda na ambulância tentando se manter acordado
Ainda na ambulância tentando se manter acordado    Pedro Cury

Não queria levantar, estava indisposto. Falei para esperarmos alguns minutos para ver se ia melhorar. Tudo foi se apagando e desmaiei a primeira vez. Quando acordei, me toquei que era algo mais grave. Passei os telefones dos meus pais e esposa para o Andre e dei as instruções do que fazer. Neste trecho não há sinal de celular, era preciso ir até o asfalto, parar um carro e pedir o socorro.

Decidimos esperar o nosso outro amigo, para eu não ficar ali sozinho. Desmaiei e acordei mais umas 2 vezes. E então, chega o Renke e faz as perguntas médicas, aperta costelas e nada parece tão óbvio. Pede pra eu tentar levantar... não consigo, quero ficar ali, pois to tonto e enjoado. Desmaio de novo.

Quando acordo, já tem um funcionário da Floresta da Tijuca ali com eles. Ele acionou por rádio um pedido para ambulância. Começo a fazer força para não desmaiar de novo, mas não consigo. Acordo novamente e ouço apenas as vozes dos bombeiros, não consigo mais ter muita imagem. Não lembro da cara deles, mas consigo conversar. Eles me colocam numa maca e lembro que o funcionário da Floresta vem e tira uma aranha que estava subindo no meu ombro: "essa amarelinha pode dar até febre". E seguimos para a ambulância.

Começa a voltar um pouco mais minha visão. Meu amigo Andre e o socorrista estão comigo. Peço para ele tirar uma foto já pensando em escrever esse relato (juro!). E tento conversar e fazer força para não desmaiar novamente. Começo a contar os riscos da lâmpada que estava acima de mim, fazer meu cérebro se concentrar em alguma coisa e peço pro motorista ir um pouco mais devagar que eu estava com dor quando balançava.

Lembrei do acidente muito mais grave do Cedric Gracia (atenção, imagens muito fortes), multi-campeão, onde com a quebra do seu quadril, houve o corte de sua artéria femural. Ele conseguiu instruir os amigos o que fazer e se segurou até a chegada do helicóptero. Podia ter morrido em poucos minutos. O meu caso então seria besteira...

Continuamos seguindo para o Lourenço Jorge, que é um hospital um pouco mais longe. A dor foi ficando muito forte e eu ia desmaiar de novo. Dessa vez pedi pro motorista acelerar! Caiu a ficha que poderia ser grave.

Você esta com risco de morte, temos que tirar seu rim

Estava acordado, mas sem visão... ouvi as rodas do carrinho levando minha maca pra emergência, não sei nem como era a sala, nem a frente do hospital... ouvia vozes, já não entendia muita coisa. Apaguei de novo não sei por quanto tempo. Ouvi médicos conversando e um deles um pouco mais apreensivo me diz que eu estava com risco de morte e precisavam operar para tirar meu rim. Numa mistura de desespero, descrença e humor eu falei... "como assim, deixa meu rim aí!!". E apaguei novamente.

Nova tatuagem
Nova tatuagem

Acordando novamente, um outro medico vem conversar comigo. Tenho um pouco de visão, ele estava calmo, tinha o braço todo tatuado, foi me perguntando o que tinha acontecido e fazendo umas perguntas para ver se eu tava consciente. Perguntei se eu tava mesmo com risco de morte e se era sério a historia do rim. Ele falou que eu tava em risco, mas iam ainda avaliar, eu não estava estável.

Acordo novamente com minha esposa olhando pra mim e chorando, consigo enxergar ela e que estou em uma baia, com uma cortina de correr e ligado a aparelhos. Tinha conseguido uma vaga no CTI e eu estava instável para operar. Não achei que ia morrer, era muito estúpido morrer assim, mas passei algumas senhas importantes pra ela de qualquer maneira.

Ali não tinha muito o que fazer, era esperar mais diagnósticos. Tinha entrado em choque hemorrágico, recebi transfusões, mas já estava estável, apesar da pressão 8x5 e 34 de temperatura Em termos de dor, esse foi o pior dia. Lembro que eu estava delirando, falando algumas frases que esqueci, mas minha esposa depois confirmou. Era meio que um pesadelo, difícil aceitar que aquilo estava mesmo acontecendo. Seria um erro médico ? Trocaram meus exames ? O tombo foi idiota, não era possível!

Algumas horas depois, acordo, agora já bastante consciente, sem dores. Minha esposa e meu pai estão do meu lado. Vejo claramente que estou num leito com um monte de aparelho ligado e uma sonda drenando sangue pela minha uretra. Ufa, já me sinto bem, não morri e consigo conversar! Os médicos me falam que tive uma perfuração no rim, que resultou numa hemorragia interna e uma lesão possivelmente entre grau 3 e 4.

A ressonância ainda não mostra muita coisa porque estou com muito sangue ainda na barriga. Já estava estável e sem risco de morte. Na pior das hipóteses, eu perco o rim, o que não me traria nenhuma sequela a principio, já que o outro rim compensa a função do perdido. Me operariam na terça.

Trabalhando nos bastidores

Não sei nada de medicina e acabo sendo guiado pelo senso comum. O hospital público está preparado para me operar ? O médico é bom ? Vai faltar equipamento ? Vão esquecer uma tesoura dentro da minha barriga. Essas eram minhas novas preocupações.

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    Pedro Cury

E aí que entra a parte super importante dos seus amigos e familiares. Minha esposa falou com médicos amigos, eles receberam meus exames, conversaram com os médicos do hospital (que foram super solícitos!). Descobri que quem me operaria seria o Bruno Vaz, que era super experiente e chefe da cirurgia. Confirmei também que tive a sorte de ir pra um hospital público, que está acostumado com casos graves e tem equipe muito experiente de plantão. Além disso, ele havia sido reformado por causa das olimpíadas.

Isso tudo traz uma enorme alívio. Já estava conformado com o pior caso, que seria perder um rim. Um amigo meu ciclista, multi-campeão Bernardo Cruz, também tem apenas um rim e vive normal. Seria péssimo, você passa a ser mais vulnerável, mas vive sem qualquer sequela. Mas queria ter certeza que não teria nenhum problema na cirurgia ou enquanto esperasse.

Os dias seguintes

A cirurgia estava marcada pra terça e era pra tirar o rim. Até lá, dormi bastante, estava com os anestésicos E incomodava mais essa apreensão de ter que passar por uma cirurgia mais longa. Chega o dia, consigo ver minha esposa antes de entrar na operação e também acordo horas depois com ela me falando bem feliz que não precisaram retirar o rim.

A operação foi um sucesso! Verificaram que a lesão era um pouco menor. E então optaram por uma abordagem mais conservadora. Cortaram um pedaço, remendaram e esperaríamos para ver como o corpo reagiria. Que sorte!

Nos dias seguintes, fui melhorando cada vez mais. A pior parte era essa incerteza se o rim poderia voltar a sangrar e ser retirado. Eu ficava muito quieto, não queria nem me mexer direito! Também fiquei preocupado com infecção hospitalar e ainda bem que eu não tenho conhecimento pra saber o que mais ainda poderia dar errado! Mas, já estava bem positivo.

Depois de uma semana, já estava estável o suficiente para ser transferido e consegui uma vaga no Santa Lucia para continuar a recuperação, onde fiquei mais 2 semanas. E então, foi uma recuperação normal de uma lesão grave. Fui voltando a caminhar aos poucos, comer, receber muito mais visitas e usar celular. No final das contas, o rim se recuperou 100% e não tenho qualquer sequela.

Ócio criativo! Vamos fazer auto-memes!
Ócio criativo! Vamos fazer auto-memes!

A última semana já me sentia muito melhor, mas precisava ainda tomar muitos antibióticos e monitorar uma coleção que tinha se formado e não diminuía (uma espécie de bolha de sangue interna). O ócio criativo atacou e até deu pra fazer umas palhaçadas. Levar com bom humor é a melhor maneira!

Sua lesão foi pela barriga

Coincidentemente, meu médico, Antonio Bernabé e seu assistente, também são ciclistas! E ficamos discutindo como aquilo pode ter acontecido. Eu imaginei que ao cair, eu teria batido as costas em uma pedra ou galho pontudo. Porém, minha lesão tinha sido pela frente, pela barriga. Levantou-se a hipótese do guidon, que é responsável por muitas lesões. Mas eu lembro claramente que o estava segurando momentos antes de cair. Seria a trava da suspensão ? Não!! Foi a espiga da suspensão!!

A espiga não cortada e foi responsável pelo acidente
A espiga não cortada e foi responsável pelo acidente    Pedro Cury

A espiga, é aquele tubo que sai da suspensão dianteira ou garfo, passa pelo quadro, e se conecta com o avanço (ver foto). Muita gente acaba não cortando totalmente para deixá-lo mais rente ao avanço, por diversos motivos - porque quer ter margem para ajustes, porque não quer ter o risco do garfo não caber em outro quadro, etc. No meu caso, era uma bicicleta de testes, que seria devolvida e não tinha tanto sentido cortá-lo. Essa questão do corta ou não corta, sempre foi alertada, mas sempre imaginamos na pior das hipóteses bater o peito ali e não o rim!!

Verificando depois o log do meu treino pelo Strava, confirmei que minha queda tinha sido realmente muito boba. Cai a mais ou menos 10 km/h. A lesão se deu por uma sequencia infeliz de fatores - meu pé escorregou, cai de pernas abertas no quadro, continuei pendurado até a bike travar e essa posição me deixou apontado justamente para a ponta da espiga que provocou a lesão. Provavelmente eu não me machucaria se estivesse mais rápido!

Lições que ficam

Nunca pedalar sozinho - Essa questão apesar de ser óbvia, é muito negligenciada. Se eu estivesse sozinho, poderia ter morrido. Pedalar sozinho em lugares que tem movimento de gente, como estradas, ruas e parques não tem problema, mas em áreas remotas não é uma boa ideia. Já participei do socorro de um amigo em 2004, que teve um corte profundo na perna, como relatado aqui.

8 kg a menos depois de 3 semanas de hospital
8 kg a menos depois de 3 semanas de hospital

Curso de primeiros socorros - Nem eu, nem ninguém que esteve comigo sabia o que tava acontecendo. Não foi levantada a hipótese de hemorragia interna. Se eu soubesse da possibilidade, teríamos pedido o socorro 20 minutos antes e esse tempo poderia fazer a diferença entre vida e morte. Esse não foi o caso, mas conversando com muitos médicos e enfermeiros, ouvi diversos casos de acidentes fatais em que a vítima poderia ter sido salva se tivesse mais instruções do que fazer. O próprio vídeo do Cedric que postei mais acima é um desses casos. Eu tentei fazer um curso desse, específico para ciclismo, 2 meses antes do acidente. Porém, a turma não fechou por falta de interessados! Isso tudo deveria ser obrigatório na escola e faculdade!

Manutenção da Bike - O meu caso não foi necessariamente falta de manutenção. Mas não segui uma recomendação. Uma falta de manutenção também pode resultar num acidente imprevisível como esse. Não negligencie!

Agradecimentos

Os amigos Lobinho e Edgar Freire
Os amigos Lobinho e Edgar Freire    Pedro Cury

Associação Amigos do Parque - Cai dentro de um Parque Nacional de administração federal. É um lugar enorme que precisa de muitos mais recursos do que dispõem. O uso do rádio para acionamento do socorro foi essencial. Temos que lembrar que esses serviços são essenciais e estão ali quando você precisar. Na época eu já participava voluntariamente de algumas reuniões da Associação Amigos do Parque, que tem diversas iniciativas para melhoria do uso da Floresta para praticantes de diversas atividades. Hoje faço também doações e acho importante a todos que usam o espaço doarem alguma quantia pra manter tudo funcionando como deve.

Comunidade Ciclística - É importante receber as mensagens de motivação dos amigos e até de gente que você não conhece, mas que estão unidos contigo pela mesma paixão pela bike. A notícia inicial e comentários estão aqui.

Médicos, Enfermeiros e Socorristas - Sim, é clichê, mas é muito gratificante ver o trabalho duro dos profissionais de saúde com todas as incertezas diárias do trabalho. Certamente damos ainda mais valor quando estamos ali sem poder andar ou ir ao banheiro sozinhos. Muito obrigado!

Amigos e Família - Nem preciso comentar. Difícil as vezes saber quem está sofrendo mais. Além de terem que tomar decisões importantes sobre as partes práticas de procedimentos, mudanças de hospitais e gerenciar sua vida enquanto você não pode.

Um ano depois

Resolvi fazer esse relato detalhado só agora, no aniversário do acidente. Estou sem qualquer sequela, apenas uma cicatriz enorme na barriga. Não tenho qualquer trauma psicológico em pedalar em trilhas porque sei que foi um acidente, bastante raro. Poderia ser fazendo qualquer outra coisa. Já fui na mesma trilha diversas vezes. O segredo está em minimizar os riscos e aceitar que pedalar é uma atividade perigosa, mas que nunca vou conseguir parar.

Autor

Pedro Cury

Editor

Pedro Cury pedala desde os anos 90, é fundador do Pedal.com.br, editor técnico da Revista Bicicleta e fotógrafo profissional.


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