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Avancini fala sobre doping no esporte

Recentemente, o brasileiro Henrique Avancini, o atleta de mountain bike brasileiro mais bem colocado no ranking da UCI, escreveu um longo depoimentos sobre o doping no esporte. Confira na íntegra o texto publicando na conta do Facebook do atleta.

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Avancini em Araxá na Copa Internacional. Foto: Thiago Melo

"Escrevi esse texto, depois de uma sequência de treinos que não segue os padrões das literaturas.
Deitado na cama, comecei a pensar em como muitos atletas ainda invertem os valores do esporte.
Como alguns inconsequentes ainda mancham a credibilidade do caminho correto.
Apesar de chegar a ser irritante ter de repetir tantas vezes meus conceitos sobre o assunto, mais uma vez escrevo sobre doping na modalidade.

Eu simplesmente amo subir numa bicicleta e competir. A essência e beleza por trás do ato de subir numa máquina de propulsão humana e buscar o máximo do que o corpo consegue gerar em sintonia com a mesma é tão bonito e complexo que chega a ser romântico.

Quanto mais rápido, mais profundo o ser humano vai e mais intensa fica essa beleza.
E a beleza atinge o seu ápice apenas no alto-rendimento, quando tudo, absolutamente tudo é experimentado numa intensidade que não é possível ser sentida em outros níveis de rendimento, por diversos fatores.

A busca por esse ápice requer, em síntese, trabalho a longo prazo. Por trás disso existe o que gosto de chamar de “etapas do processo evolutivo”. A preparação é cada vez mais profunda quanto mais alto for o nível almejado.

Tornar-se um atleta que consegue pedalar (estar) rápido não é muito difícil, mas se tornar alguém que é (ser) rápido, demanda muito mais.

Qual a diferença entre estar rápido e ser rápido?
Digamos que “estar” rápido é um estado momentâneo, a performance puramente analisada em números, a curto prazo.

Já o “ser” rápido é uma consequência de uma série de atitudes que moldam, em sincronia, o corpo juntamente com uma mente forte. O “ser rápido” depende de um desenvolvimento sólido, que seja duradouro, mesmo que o nível de performance eventualmente aumente e diminua.
Se existe algo que considero cansativo ter que falar é sobre doping. Porém, mesmo assim estou sempre citando o tema em entrevistas, debates, etc...

Aparentemente o ciclismo brasileiro continua tendo aspecto profissional, mas com suas raízes atrasadas, amadoras e de conceitos que corroem a possibilidade de evolução real.
O que eu quero dizer com “evolução real”?

Já são bons anos competindo e vivenciando bastante coisa no MTB internacional e posso garantir que um atleta só pode ser considerado bom, depois de passar por um processo que consiste em várias etapas evolutivas.

O esporte evoluiu a um nível de preparação absurda. São tantas técnicas de treinamentos, análises, preparação complementar, técnicas de recuperação, de nutrição...enfim, um universo de variações de onde o atleta pode buscar ganho de performance.

São tantas variáveis, tantos meios, que considero que o bom atleta de mountain bike deve possuir um conhecimento básico de muita coisa e só assim conseguirá desenvolver um bom trabalho com os profissionais especializados que o auxiliem. Num esporte onde você treina isolado, é muito importante que o atleta seja capaz de identificar, entender e gerenciar o que está acontecendo com si próprio. Parece simples e óbvio, mas acredite isso não é algo que muito atletas conseguem entender- e aqui me refiro já ao seleto grupo nomeado atletas de elite.

No passado tomei uma decisão pessoal em relação ao uso de doping. Eu determinei que não importa onde eu chegaria como atleta profissional, eu alcançaria puramente por trabalho duro e limpo (leia-se atleta limpo = não dopado).

Esse princípio foi formado e estabelecido dentro de mim por uma série de fatores e acontecimentos a minha volta. Um deles foi em 2009, quando fui contratado por uma equipe na Europa e nessa época ainda existiam resquícios de doping no pelotão internacional. Quando eu entrei no circuito o cenário era de transformação. Algumas referências do passado andavam de cabeça baixa, tentando algum lugar onde pudessem se encaixar, mas já não havia.

Foi nesse período que eu aprendi a enxergar a diferença de mentalidade e postura competitiva entre um atleta dopado e um atleta limpo. Hoje, eu realmente acredito que o doping é um verdadeiro limitador da real evolução. Qual a razão para eu crer nisso com tanta confiança?

Vou tentar resumir analisando hipoteticamente dois atletas, um dopado e um não dopado.
Só ressaltando que aqui não exponho “achismos”, mas sim o que vi ao meu redor em vários anos como profissional, dentro do Mountain Bike Olímpico, que é o universo do qual faço parte e tenho propriedade para falar.

Primero, vamos pensar num atleta não dopado que chegou num nível de performance de alto rendimento.

O desenvolvimento para um atleta assim, requer estudo, autoconhecimento, trabalho a longo prazo, evolução através de erros e acertos e o principal, maturação esportiva. O processo forja um atleta mais estável, que consegue passar pelos altos e baixos do esporte de alta performance, e sempre se redescobrir e ver espaço para melhorias.

Assim o atleta sempre se torna melhor. E melhor não quer dizer sempre mais rápido, mas sim sempre o mais rápido que se pode ser no momento. O mérito é uma consequência da qualidade do trabalho que foi desenvolvido.

A autoconfiança de um atleta que passou por esse processo, baseia-se no quanto ele se entregou na preparação ao longo de anos e no que o trabalho dele pôde gerar. Geralmente esse tipo de atleta se preocupa muito mais com o que ele está fazendo do que os outros estão fazendo. Para esse tipo de atleta, é muito mais importante buscar a evolução do que saber se tem alguém andando mais rápido do que ele.

O objetivo primordial sempre é buscar a própria evolução. Agora vamos ao atleta dopado.
O atleta dopado anda, eventualmente, rápido. Eventualmente, vence provas. Porém nunca – nunca mesmo -- evolui.

Afirmo isso pois analisando os mesmos pontos:

O desenvolvimento de um atleta dopado é veloz, não demanda tanto tempo. O atleta não passa por um processo de preparação, ele passa por um tratamento. Obviamente o atleta tem que subir na bicicleta, fazer força, se dedicar e tudo mais...Porém, o fato das reações do corpo serem mascaradas, impossibilita o atleta de entender e absorver o autoconhecimento que somente o processo de treinamento pode gerar. A confiança desse atleta, está na substância administrada e a performance é esperada dependendo se o “tratamento” funcionou ou não.

Ele não confia no que ele fez, ele confia no que tomou. Esse tipo de atleta se preocupa muito mais com o que os outros estão fazendo, como estão andando, o que eventualmente estão tomando, do que onde ele poderia melhorar.

O doping é um atalho, só que na viagem mais curta, você deixa de ver, aprender e absorver muito.
Costumo dizer que doping não ganha corrida. Eu sempre considero que não perco para um atleta dopado. Isso mesmo, não me preocupo se o sujeito está com a carcaça cheia de porcaria.
No MTB isso não basta para se tornar um vencedor, pois quando chega o momento decisivo a cabeça do atleta que trabalhou para chegar ali, simplesmente esmaga o cara que escolheu um caminho mais curto.

Quem constrói uma capacidade de andar rápido, constrói através de um processo que sempre o aproxima da dor, até ser algo natural e que o atleta consegue administrar.
Quem tenta “injetar” performance não passa por essa experiência que transforma, e é por isso que as pernas podem até girar rápido, mas é fácil ver a diferença na postura do atleta.

O atleta dopado não cria raízes profundas e é por isso que quando ele se depara com alguém que está pedalando na mesma velocidade e não se dopou(mesmo que ele não saiba), ele não consegue confrontá-lo pois não têm outros artifícios, não possui outros recursos para gerar performance.
Ele simplesmente não aprendeu a tirar performance de algum lugar que não seja de uma seringa.
Como atleta de elite, eu me preocupo principalmente com as próximas gerações.

O meu maior receio é ver jovens atletas, que ainda nem aprenderam o que é dor de verdade, perderem a fé no trabalho duro. Começarem a abaixar muito a cabeça e olharem só para o curto prazo.
Não sigo a cartilha do bom atleta das redes sociais. Não pretendo agradar a todos ao me expor e logicamente seria mais fácil e comercial ser político.

Me ame ou me odeie, goste ou desgoste, quero sempre usar o esporte como ferramenta para expor a verdade e moldar caráter, pois é esse o maior poder que temos através do esporte.
Pedalem forte e deixem a sujeira só para a parte de fora do corpo!"


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